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sexta-feira, julho 02, 2010

Ilha da Madeira


 
"Um dia as ladeiras choraram as casas. Lágrimas com janelas desciam pelo rosto da ilha como loucura da natureza. Parecia como chorarem o impossível, e a tristeza, na verdade, mexeu-se da terra para dentro de todas as pessoas. Um dia as ladeiras choraram as casas e as árvores, e choraram todas as pessoas, mesmo as que estavam longe, a ver pela televisão.
Cresci a pensar que as casas eram para sempre, sem fim, erguidas à chuva e ao frio sem medo nem fraqueza. Acreditava que os super-heróis eram aqueles que partiam paredes com murros ou levantavam os telhados à procura dos ladrões que se escondiam, porque eu achava que levantar um telhado com as mãos era a maior das fantasias, se era verdade que nem o inverno parecia abalar as telhas da nossa casa.
 

Eu cresci a ver as casas postas pelas ruas, pelos montes, como se fossem animais vivos agarrados com força à terra, iguais a pedras grandes por onde entrávamos, pedras espertas, cheias de inteligências e funções para nos guardarem da melhor maneira. Creio que me convenci de que o lobo mau nunca deitaria abaixo uma casa a sério, por mais que soprasse e tivesse fôlego. O lobo mau estava vencido para sempre, depois de terem desaparecido as casas de palha mais as de madeira.
Era comum, na nossa casa de Paços de Ferreira, ouvirem-se as madeiras a estalar e o modo como o vento por vezes entrava pelas ranhuras das janelas antigas. Era comum sentirmos essa experiência da casa, como se ela própria escolhesse as suas manifestações, quieta de nós, mesmo à revelia do que queríamos. Sempre me davam medo os ruídos mais intensos e a minha táctica passava invariavelmente por esconder a cabeça debaixo dos cobertores e esperar que o que fosse passasse.
Ainda que passassem os ruídos, cresci a pensar que as casas tinham lá as suas coisas, umas certas tarefas de que se ocupavam, independentes da nossa consciência e todas senhoras dos seus narizes. Com isto, prestava atenção às alterações e reverberações mais do que devia, constantemente à procura da comunicação utópica com os objectos.
Os objectos, achava eu, ao menos os que ostensivamente haviam sido feitos de coisas outrora vivas, como as madeiras e as peles dos sofás, haviam de ter reminiscências dessa vida e talvez produzir um retorno, um qualquer discurso que pudéssemos descortinar, a partir do qual pudéssemos entendê-los melhor. Era uma ideia muito peregrina, a de esperar que os objectos, à sua maneira, haviam de nos dizer algo se prestássemos cuidadosamente atenção. A nossa casa, que era um objecto gigante feito de tanta coisa outrora viva, andava como que a tentar dizer algo. Como era antiga, vinha de outro século e já passara por tanto, havia de ter uma história quase infinita para contar. Talvez precisasse de a contar, talvez o desejasse muito.
 

Cresci a encostar o ouvido às coisas, a ver se pelo lado oco dos seus corpos o ar guardado ressoava a formar palavras concretas. Esperava que ao menos construíssem o mar como os búzios, ou talvez que construíssem a terra de onde brotaram, o som de germinar, ou talvez a violência do abate das árvores, de como deve ser doloroso, ainda que para um ser sem córtex cerebral. As árvores são uns seres tão grandes que custa a acreditar que não sintam nada, nem uma tristeza pequenina ou uma dor como picada de dedo na ponta de um ramo. As árvores são vivas, como se fossem gente comprida a enfeitar o mundo. Custa a acreditar que enfeitem o mundo tão maravilhosas e não o tenham planeado. A mim não me convencem de que por dentro do silêncio as árvores não são inteligentes e não sabem perfeitamente o que fazem e porque o fazem. Haviam de lhes nascer umas bocas e logo todos o saberiam com certeza.
 

O que eu esperei das casas, como é bom de ver, nunca foi que viessem ladeiras abaixo, passando todas inteiras como em passeio. Uma casa, claramente, não é coisa de passear, e só por grande choro haviam de se ter lembrado de o fazer numa ilha tão florida no meio do mar.
Quando vi na televisão, mal pude crer. Reconheci com dificuldade alguns lugares que visitara porque se faziam de lama os caminhos mais limpos e as pessoas gritando também nos turvam o olhar. Conseguimos ver menos quando ouvimos um grito. Fica-se muito aflito também, e não temos super-poderes para telepaticamente comandar a natureza e corrigir o desvario em que se pôs. Quando vi na televisão pensei nos meus amigos da Madeira e pensei em como estariam e onde.
O meu amigo Nélio, na Madeira estão quase todos os Nélios de Portugal, andava meio desnorteado. Parecia-lhe que as chuvas derretiam a sua infância, como se a memória das coisas fosse de derreter e ir parar como entulho ali à dentição do mar. O meu amigo Nélio ficou desnorteado assim de não pensar melhor e passar a pensar pior, porque lhe custava pensar e não entendia como podiam as casas e as ruas estarem a sair do sítio, porque também para ele essas eram coisas que não saíam do sítio nunca e o que estava a acontecer só podia ser um absurdo.
Depois telefonámos às pessoas para sabermos como estavam também. Acho que tivémos sorte e agradeço às sortes o facto de toda a gente que conhecíamos nos ter atendido o telefone. Ainda assim, sepultámos um a um cada desconhecido na contabilidade da nossa tristeza.
Ponho os pés na Ilha da Madeira, agora, como a amparar no próprio peito a fúria do vento e a torrente da água. Finco os pés no chão como a dizer que por mim não passarão. É uma tolice que me sobrou dos tempos dos super-heróis, obviamente, porque um qualquer barracão me passaria a ferro e me levaria também à dentição do mar. Sou uma comida até bem fraca, flébil, como me diz o Isaque Ferreira. Mas não tenho cá emoções flébeis, que eu ponho o coração no meio de cada dia e passo no tempo apenas por sentir, e sinto muito, que é como quem diz, lamento muito a dor que na ilha aconteceu, uma dor que acontece e se aqui ponho pés venho todo como alguém que se compadece.
 

Gostava de ter um martelo e uns pregos mágicos que fossem das casas ao mais férreo do chão. Gostava de o trazer à ilha e garantir que nenhuma outra casa se poria a passear. Mas não o posso fazer, como disse, os tempos dos super-heróis acabaram e acreditarmos nos homens já é difícil o suficiente. O que posso fazer é voltar, voltar sempre, como garantia de que vai haver sempre quem cá venha ver, tomar conta, vigiar, ainda que por breves instantes, como quem se põe à espreita a meter juízo na mãe natureza, que ela às vezes também é palerma e disparata sem pensar."

Texto na íntegra de valter hugo mãe sobre a tragédia da Madeira (JL e DN Madeira)

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