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domingo, julho 18, 2010

abro a cama do horizonte


Abro a cama do horizonte. Deito para o lado
os lençóis para onde correram os barcos
do sonho. Os braços caem-me para o outro lado
da cama, como se fosse o outro lado da terra. «Pensei
em ti, que me esperavas, que o teu corpo nu brilhava
nos sulcos desses barcos antigos.» Mas
o que ficou nessa cama foram as manchas cinzentas
da madrugada, pesadas como reposteiros de fogo,
frias com a ausência das aves marinhas; e
nenhuns lábios me responderam. Queria ouvir-te falar
sobre a brancura do travesseiro, os cabelos ainda
tapados por um cobertor de ventos. Olhei
as paredes vazias, os lugares de onde tiraram os quadros
com as marcas do pó na parede, um espaço vazio
de imagens. «Quem se compadece dos corpos que o tempo
                                                                                  devorou,
perguntas-me, dos olhos ainda ofuscados com a primeira luz,
das mãos que procuram um caminho na indecisão do amor –
presas aos pregos que ninguém arrancou, furadas
pela luz negra da ferrugem, como os estigmas secos
do sexo?» Posso fazer um inventário dessas
perguntas, somá-las na memória, como datas esquecidas
que se descobrem, de súbito, nas páginas de uma velha
agenda; e só os nomes que elas encobrem me levantam
dúvidas – como se cada um deles me ferisse,
rostos que regressam a uma galeria fechada pela solidão
dos anos, os últimos da adolescência, com a sensação
de um fim que a vida vai adiando. Por que não te segui na
descida para o abismo dos quartos? Ou ainda,
por que evitei o teu olhar nessa porta que demoravas
a fechar, antes que o ar da rua me puxasse,
impedindo-me de dizer que te amava, ou apenas que a
noite estava fria – e que numa noite fria o amor é
uma solução possível? Mas é sempre assim: o tempo acaba
por corrigir cada um dos nossos gestos passados, como
se quisesse obrigar-nos a uma segunda vida; e quem se demora
a pensar neles, descobre que nenhum exercício pode trazer
um corpo aos braços que o evitaram, nem arrancar um sorriso
aos lábios que se limitam à despedida. Então, os barcos
dobram o último cabo; e um canto de marinheiros sobrepõe-se
ao ruído dos temporais, rasgando as velas da noite. O teu
rosto brilha no incêndio da manhã; os teus passos
distinguem-se sobre o ranger das madeiras: e és tu,
envolta no estranho sudário das mulheres amadas, que
abres a porta do porão, onde um cheiro a sal limpa os sentidos
de uma sujidade de nostalgias e dúvidas. «Deita-te comigo,
dizes-me; partilha o lençol corrupto da meia-noite; conta-me
por onde andaste, nestes séculos, anos, instantes
submersos pela cinza dos vulcões que o amor apagou?» 
Deixas-me esse instante; e vejo-o desaparecer-me por entre os dedos,
chama fátua com que me chamas, ainda…


Nuno Júdice, Poemas em Voz Alta

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